Em dezembro de 1984, enquanto eu seguia para Anápolis no meu baleado Chevette branco, na companhia do José Ricardo, para assistir ao casamento do nosso amigo Zé Maurício com a Cida, ouvíamos o mais recente álbum de Caetano Veloso em fita cassete.
O mundo vivia, então, um período conturbado, o choque neoliberal de Ronald Reagan, nos EUA, e Margaret Thatcher, no Reino Unido, causava desemprego e insatisfação aos trabalhadores e fazia escola em outras partes do globo. A URSS tentava sobreviver, ainda sem a política renovadora de Mikhail Gorbatchov, que começaria em 1985 e exporia ao mundo as fragilidades de décadas de regime fechado. A Guerra Fria caminhava para o seu final, que foi sacramentado em 1989 com a queda do muro de Berlim.

Margaret Thatcher e Ronald Reagan dançam com sorrisos de quem exerce podres poderes.
No Brasil, após 20 anos, a ditadura agonizava e era pressionada pelo movimento das Diretas Já, que visava o voto direto para escolha do presidente que viria a substituir o último general-presidente João Figueiredo. Como é sabido de todos, a emenda constitucional para eleição direta do presidente da república não passou e o civil Tancredo Neves foi eleito indiretamente pelo Congresso Nacional em 1985.

Comício das Diretas Já em 1984
Foi nesse cenário de indefinição que Caetano Veloso lançou uma de suas músicas mais contundentes e iradas: Podres Poderes, primeira faixa do álbum “Velô” de 1984.
Caetano despeja sua indignação ao estado de coisas do nosso país e expõe muitas de nossas mazelas.
A passividade do povo diante dos poderosos:
Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais
O capitalismo selvagem que só gera riqueza para uma minoria:
Queria querer gritar setecentas mil vezes
Como são lindos, como são lindos os burgueses
E os japoneses
Mas tudo é muito mais
A necessidade crônica de se apoiar em ditadores e falsos heróis:
Será que nunca faremos senão confirmar
A incompetência da América católica
Que sempre precisará de ridículos tiranos?
Será, será que será que será que será
Será que essa minha estúpida retórica
Terá que soar, terá que se ouvir
Por mais zil anos?
Os excluídos:
Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Índios e padres e bichas, negros e mulheres
E adolescentes fazem o carnaval
Queria querer cantar afinado com eles
Silenciar em respeito ao seu transe, num êxtase
Ser indecente
Mas tudo é muito mau
A opressão do mais forte sobre o mais fraco:
Ou então cada paisano e cada capataz
Com sua burrice fará jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades, caatingas
E nos Gerais?
A banalização da miséria, da violência e das injustiças:
Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Morrer e matar de fome, de raiva e de sede
São tantas vezes gestos naturais

Capa do álbum “Velô”
Apesar do pessimismo geral da canção, Caetano nos dá uma pista para nos salvar dessas trevas que nunca nos abandonam. A esperança está na cultura, nas artes e, especialmente, na música.
A música, entre outros, de Hermeto Pascoal, Tom Jobim, Milton Nascimento, Tim Maia e Jorge Ben:
Será que apenas os hermetismos pascoais
Os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão dessas trevas
E nada mais?
Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo
Daqueles que velam pela alegria do mundo
Indo mais fundo
Tins e bens e tais
Será que será que estamos muito diferentes hoje, do que estávamos na década de 1980? Iremos deixar um ridículo tirano realizar seus sonhos ditatoriais?

Será, será que será que será que será?
VÍDEOS
Faixa do álbum:
Ao vivo:
Tema super atual, Paulo! Por diversas vezes me pego pensando o que podemos fazer pra mudar esse cenário. Militância de facebook ou twitter parece que não tá resolvendo, apesar do alcance ser grande, dependendo da voz que fala. Sumir do Brasil me parece uma opção muito egoísta e covarde, mas também é uma alternativa que considero…. sinceramente, estou perdido. A vontade é de partir pra luta, mas a coragem é pouca e o tempo, escasso.
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Estamos num labirinto sem ver a saída.
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