
A série A Canção e a Cidade faz parte da disciplina Rockontro: Contextos musicais, Urbanos, Arquitetônicos e Culturais do curso de Arquitetura e Urbanismo da UEG ministrada pelo professor José Maurício de Sousa. Os alunos se propõem a fazer uma análise de canções que dialogam com elementos arquitetônicos e/ou urbanísticos.
Aluno: David Franco de Godoi
De Chico Science e Nação Zumbi a Mateus Fazeno Rock: crônicas periféricas de cidades litorâneas
“Entulhados à beira do Capibaribe na quarta pior cidade do mundo, Recife, cidade do mangue. Incrustada na lama dos manguezais” canta Chico Science nos primeiros segundos de “Antene-se”, 10ª faixa do álbum Da Lama ao Caos. Lançada em 1994, a frase é contemporânea a uma reportagem do Los Angeles Times, que designava a capital de Pernambuco como a quarta pior cidade do mundo em qualidade de vida, e a afirmação em questão revelava um fato: a crise que o estado vivia. Segundo David Harvey, as crises “[…] são fundamentais para o funcionamento do capitalismo.” E, consequentemente, o avanço do capital imobiliário sobre as cidades.

Frases como: “A cidade não para. A cidade só cresce. O de cima sobe, o debaixo desce.”, do mesmo álbum, na faixa “A Cidade”, elucidam de forma objetiva o entendimento que Science tinha sobre a produção e a reprodução das desigualdades no espaço urbano. Conforme revela Gabriel Mascaro no documentário “Um Lugar ao Sol”, a “elite” brasileira se interessa profundamente por habitar regiões litorâneas, sobretudo em coberturas. Recife evidentemente não contraria a lógica e segue refém dos interesses do mercado, reproduzindo uma cidade que está constantemente em disputa. Ainda nessa mesm faixa Chico canta: “O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas, que cresceram com a força de pedreiros suicidas.” Pedreiros esses que não habitam as “pedras evoluídas”, portanto, o sol é para quem?
É fácil afirmar que “Da Lama ao Caos”, para além de um álbum, é um manifesto político. As letras, na maioria das vezes, tratam de uma violência sofrida coletivamente (a violência do dinheiro) e levam sempre a uma solução coletiva: se organizar politicamente, ou, parafraseando, “[…]pra gente sair da lama e enfrentar os urubus[…]”.
Por outro lado, Mateus Fazeno Rock, no album Rolê nas Ruínas (2023), nos convida para um passeio na periferia de Fortaleza. Aqui, as letras se assemelham a uma crônica e, diferentemente de Chico Science, a narrativa sobre a violência sofrida atinge o nível do indivíduo, exemplificado na faixa “Trilha Sonora para o Fim do Mundo”, no trecho: “Eu vim andando. Eu vi a old. Old cidade velha. Velha em silêncio com seu dente de ouro na boca, andando ali do outro lado da rua. Ela me evita pois tem medo que eu leve sua bolsa” se referindo a um caso de racismo velado. Ou também, na primeira faixa, “Vozes da Cabeça”, com a linha: “[…]E a tortura é o Estado querendo desentortar meu corpo[…]” retratando, com sarcasmo, a violência policial vivida nas periferias.

Ambos os artistas retratam a cidade que é produzida com a premissa do lucro e seus diferentes níveis de violência como consequência e mecanismo de manutenção dessa lógica. Mas há também semelhança na postura de produção sonora. Chico nos propõe o Mangue Beat, um rock que mistura maracatu, rap, música eletrônica, etc. Mateus Fazeno Rock aposta na mistura entre rock, funk, reggae, etc., e autointitula o conjunto como “Rock de Favela”, diferenciando-se, mas ao mesmo tempo seguindo essencialmente a mistura autêntica em “Da Lama ao Caos”.
No primeiro álbum citado, ainda na década de 90, o cantor narra a cidade com suas contradições, num contexto global de retrocesso no combate às desigualdades. Após quase 30 anos, Mateus constrói uma narrativa que revela, mesmo após tanto tempo, uma cidade que está em ruínas e nos convida a imaginar se são de um “caos” mal sucedido ou se talvez nunca tenhamos saído da “lama”.
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