Thaís Lobo *
Publicado originalmente na Tribuna do Planalto
Alheio ao preconceito, o gênero musical que contestou – e ainda contesta – os valores tradicionais da sociedade ganha força em sala de aula e reforça os conteúdos de História e até da Física
Ele já contestou os padrões dominantes, questionou os valores tradicionais e chocou toda uma geração. O rock, gênero musical nascido na década de 1950 e que se tornou um dos maiores representantes da contracultura do século passado, continua fazendo tudo isso nos dias atuais.
Porém, agora ele também se tornou um aliado na sala de aula para discutir não apenas a sociedade contemporânea, mas até elementos da Física. É com músicas de rock e heavy metal, vertente mais pesada do rock que nasceu em 1970, que o doutorando da Universidade de São Paulo (USP), Emerson Ferreira, tem pesquisado novas formas de ensinar Astronomia aos estudantes do Ensino Médio.
“Fizemos um levantamento bibliográfico do que era produzido na cultura pop nessa época e encontramos no rock, de 1965 a 1967, diversos artistas tratando de temas relacionados ao espaço e à exploração espacial”, relata ele.
Bandas como Pink Floyd, Black Sabbath e Queen, além das brasileiras Mutantes e Novos Baianos, agora fazem parte do repertório dos alunos de Ferreira. Na tese desenvolvida por ele, é defendido uso de elementos da cultura primeira do estudante, coisas do dia a dia como a música e o esporte, e principalmente o uso da cultura pop para formar uma ponte entre esse saber prévio e o conhecimento formal adquirido em sala de aula.
A ideia é aproximar o cotidiano do jovem com conceitos densos, como os da teoria da relatividade. A música 39, da banda britânica Queen , é um exemplo disso. A composição do guitarrista Brian May, doutor em Astrofísica, narra uma viagem ao espaço onde diversos acontecimentos fazem parte da teoria da relatividade de Albert Einstein.
“Nós fazemos uma análise das letras das músicas e usamos referências linguísticas e semióticas, além da análise de discurso para entender o processo de enunciação do texto e as questões ideológicas e o contexto histórico em que ela foi produzida. A partir disso, montamos atividades de trabalho em grupo”, explica o professor.
As atividades consistem em distribuir textos com as letras das canções para que os estudantes escutem e identifiquem as referências espaciais presentes na música. “Mesmo quem não gosta de rock acaba tendo uma afinidade, porque eles são um público jovem. Quem não tem o hábito de ouvir esse gênero vê com curiosidade e acha interessante. Essa curiosidade é importante para o aluno investigar na letra e buscar os conceitos nas canções para complementar a aprendizagem”, ressalta.
ENSINANDO ROCK E CULTURA
A ideia de incluir o rock e o heavy metal nos conteúdos das aulas tomou uma proporção maior depois do 1º Congresso Internacional de Estudos Sobre o Rock, realizado em setembro de 2013 no Paraná, e onde diversos pesquisadores da área de educação, incluindo Ferreira, participaram.
No evento, o representante goiano foi o professor de História do Instituto Federal Goiano (IFG) de Ceres, Luiz Eduardo Bacural, que apresentou a sua tese de mestrado “O Hardcore em Goiânia nos anos 90”. Bacural conhece bem o rock goianiense. Foi um jovem influente na cena roqueira da década de 1990, participou de bandas, eventos e aterrorizou os familiares quando adotou o visual punk, que é mais agressivo e composto basicamente por roupas pretas.
Mas, apesar do choque cultural, foi justamente os movimentos punk e hardcore que influenciaram na escolha da profissão. “Muita coisa que eu conheci na época, como as questões ligadas ao socialismo, anarquismo, Karl Marx, Nietzsche, foi através de fanzines, e eu vi que havia uma identidade entre o que se tinha dentro dos movimentos ligados à contracultura com o que eu gostava e acabei criando uma afinidade ideológica e musical.”
Com toda a bagagem cultural e teórica adquirida na faculdade, Bacural leva a seus alunos músicas que vão do punk ao heavy metal e que explicam diversos fatos históricos. “Tem heavy metal que fala de questões medievais e até mitológicas. Outras bandas de rock abordam matérias de geopolítica, do mundo pós-segunda guerra mundial e aí eu uso a letra da música, a imagem, um clipe ou mesmo as camisetas das bandas, criadas para ‘agredir’ o sistema.”
A História, Geografia, Filosofia e Sociologia também são explicadas através do rock pelo professor Fábio ‘Sabbath’, apelido inspirado pela banda inglesa precursora do heavy metal, Black Sabbath.
Formando em todas essas disciplinas e mestre em Sociologia, o educador é um grande roqueiro da cidade e mora numa casa que mais se parece um museu do rock, pois conta com um acervo com mais 15 mil CDs e 8 mil DVDs, além de diversos posters, livros, revistas e camisetas.
ROCK INFLUENCIA O ENEM
O rico acervo de material de rock e heavy metal é usado não só para o entretenimento do professor ‘Sabbath’, mas também para muito estudo dele e dos alunos.
Segundo ele, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) traz uma recomendação para o estudo da cultura contemporânea que envolve os movimentos culturais ocorridos no mundo, principalmente aqueles após a segunda guerra mundial.
O professor explica que, a partir dos anos 50, quando o rock nasceu, ele passou a ter uma influência direta no comportamento da juventude, mas foi a partir da década de 1960 que as letras das músicas passaram a ter um conteúdo mais politizado graças a um cantor chamado Bob Dylan, que inseriu temas sociais e políticos em suas canções e, segundo ‘Sabbath’, mudou a história cultural do nosso tempo.
“A partir disso, o rock deixou de ser aquela música inocente dos anos 50, feita só para dançar, e passou a ter um conteúdo mais político. Os anos 60 foram marcados pela guerra do Vietnã, o racismo, o machismo e o preconceito social. O rock passou, então, a ser utilizado pelos jovens como uma espécie de comunicação para eles expressarem a sua insatisfação com a sociedade, a sua rebeldia, sua crítica social”, ressalta o professor.
O movimento punk dos anos 70 é outro genero musical contextualizado em sala de aula por Fábio Sabbath. “Ele foi o movimento mais politizado da história do rock. O desemprego, a crise do petróleo, o neoliberalismo… Tudo isso os punks colocaram nas letras de suas músicas. No Brasil, inclusive, quando o rock renasce na década de 80, ele tem muita influência do punk, que é a letra de uma forma mais crítica.”
PRECONCEITO NA BERLINDA
O professor Fábio ‘Sabbath’ usa o rock em todas as disciplinas para melhorar o aprendizado dos alunos e, apesar do visual característico da tribo e pouco usual em ambientes formais, ele afirma que só sofreu preconceito no início da carreira, há mais de 20 anos.
Muitas escolas não queriam contratá-lo por conta das longas madeixas, mas o insistente educador pedia uma oportunidade para mostrar o seu trabalho e hoje dá aulas em 11 instituições de ensino da rede privada, na Capital e interior.
Hoje, entre alunos, pais, professores e gestores das escolas em que trabalha, ‘Sabbath’ encontra apoio para sua metodologia de ensino. “Às vezes tem alguns alunos que são muito apegados à religião e que tem uma postura um pouco mais radical, que discrimina um pouco mais. Mas, com o passar do tempo, conhecendo a história do rock, entendendo a sua função social, muitos acabam mudando de opinião e terminam o ano felizes e agradecendo por ter conhecido o rock, sabendo que o preconceito que a sociedade tem não corresponde à realidade”, destaca o professor.
Já o professor de História do Instituto Federal Goiano de Ceres, Luiz Eduardo Bacural, acredita que o mundo hoje é mais pluralizado e aceita melhor o rock, mas reconhece que ainda existe um choque cultural quando o estilo é apresentado. Contudo, para ele, o professor deve ter competência profissional e mostrar que o uso da música em sala de aula não é recreativo, mas uma ferramenta nova de aprendizado. “É um novo método. E o que é melhor: os alunos desconstroem aquela imagem de que o rock é uma coisa ligada a gritaria e às drogas. Eles veem que, dentro do rock, existe uma consciência história e crítica”, conclui o professor.
FORÇA NO INGLÊS E NA DESCONTRAÇÃO
A turnê da banda inglesa Black Sabbath revelou uma função diferente para o heavy metal. Durante os shows que rodaram por São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte, milhares de fãs (cerca de 35 mil em cada show, exceto o de São Paulo que contou com 70 mil pessoas) cantaram músicas inteiras em inglês.
Pode parecer bobagem, mas em um país que tem um dos piores índices de proficiência em inglês no mundo esse é um feito difícil de ser descartado. O motivo de tal façanha quem explica é o professor de Química, Vinícius Pavanalli.
Ele, como milhares de outros fãs de rock e heavy metal, começou a aprender línguas estrangeiras através das músicas, num exercício trabalhoso, mas também gostoso de traduzir e cantar as canções. “O pouco de inglês e do espanhol que eu sei hoje vem da música”, reconhece.
Pavanelli, que também é guitarrista de uma banda de rock/blues, também soube utilizar esse estilo musical em suas aulas, mas não para ensinar e sim descontrair. Professor de cursinhos pré-vestibular com salas de aulas que vão até 180 alunos, ele encontrou no rock uma saída para aliviar o stress dos alunos e motivá-los através de paródias de músicas bastante conhecidas. “Eu levo meu violão para a sala de aula e os alunos cantam , junto comigo, para ficarem mais animados.”
* Thaís Lobo: Jornalista e amante do rock e do heavy metal gentilmente nos permitiu republicar seu excelente texto aqui no Rockontro.
Muito instrutivo o texto. Excelente abordagem!!! Obrigado Thaís e obrigado Alan por fazer a ponte.
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